quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Café com Filósofos

O dia em que assessorei meu trabalho de mestrado a respeito da obra de Milton Kurtz, com Arthur Danto e Walter Benjamin, em lugar e tempo fora do nosso espaço-tempo...


“_Ainda acho que não deves apresentar teu trabalho assim, desse jeito, em forma de prosa. Não considero que este seja o objetivo do trabalho, afinal, não é nada acadêmico. Disse Benjamin, meio que aguardando o aval de Danto.
Este, coçou a barba e desviou o olhar dos meus impressos, soltou um longo suspiro, e, na sua autoridade mais senil que os interlocutores, sorveu um gole do seu café, e finalmente falou:

_ Querido Walter, não foi você quem dispôs de um amplo repertório de formas literárias? Deixe o garoto experimentar a narrativa, afinal, a arte precisa de textos claros, sem obscuridade! As obras de arte não são tão obscuras quanto alguns textos críticos sobre elas.
Confesso que criei um campo de batalha. Restava-me apenas assistir àquele encontro tão inusitado.

_ Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito. A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria - a vida humana - não seria ela própria uma relação artesanal. Seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência - a sua e a dos outros - transformando-a num produto sólido, útil e único. O narrador figura entre os mestres e os sábios, seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. Ele pode aplicar esses conceitos no trabalho, mas francamente, não creio que o garoto tenha talento para um texto narrativo.

Resolvi não comentar o “elogio”, e tentei levantar uma questão para o meu trabalho:
_ Me preocupo em fazer um bom levantamento histórico da obra do Milton, do seu contexto, as influências que ajudaram a compor sua obra, principalmente as opiniões dos seus contemporâneos, tanto dos críticos quanto dos artistas. Gostaria de preservar as palavras e depoimentos de cada um...
_ Sim, você DEVE preservar as idéias originais, integralmente, eu diria – interrompeu Benjamin. Deves conservar a potência e a forma original de cada depoimento, desenvolvendo um pensamento dialético. Salvar as coisas é preservar suas qualidades e diferenças!

- A idéia do Mosaico – completou Danto.
_ Exatamente!
Danto pareceu querer contribuir com a questão.

_ Simpatizo com a idéia do mosaico e também com a narrativa. Eu gosto do uso coloquial, gosto de pôr muito da realidade local na minha escrita. Portanto é muito americano, mas não muito acadêmico como é a maioria dos escritos filosóficos e como este texto seu. O uso de experimentos de pensamento veio, penso eu, com Wittgenstein e, especialmente, com Elizabeth Ascombe - que inventou alguns exemplos extravagantes. A princípio, era interessante tomar afirmações que as pessoas consideravam verdadeiras e então tentar imaginar um mundo no qual elas fossem falsas, e então tentar imaginar como seria viver nesse mundo.

_ Filosofia analítica – disse Benjamim.
_ Exatamente! Falou, Danto sorrindo.

Grato com o entendimento entre os dois pedi à garçonete mais três expressos e resolvi apresentar uma delicia local. Não preciso dizer que os dois, no alto de sua intelectualidade, se permitiram caretas infantis ao saborearem um delicioso pão de queijo. Apenas um comentário de Benjamin: “é Kosher?”

Resolvi aproveitar a deixa e reforçar minha preocupação documental e colocar à prova o conceito de auto-referência, a que Danto respondeu:

_ Estudar este seu artista, o Kurtz, é determinar o lugar que ocupa na história da arte e a relação com seus autores. A Conexão entre a identidade da obra e seu tempo, lugar e procedência. Não pode abstrair a historia. É preciso extrema cautela com o imperativo estético purista bem como com concepções a-históricas. A natureza histórica baseia-se no pensamento de “nem tudo é possível em qualquer momento, desenvolvido por Heinrich Wolfflin. A arte é como confirmação da teoria de Hegel da história, segundo o qual, o espírito está destinado a tornar-se consciente de si. A arte reproduz o curso especulativo da história, tornando-se auto-consciente. A consciência da arte sendo arte sob uma forma reflexiva comparável a da filosofia. As obras de arte se transfiguraram em exercícios filosóficos da arte. A definição da arte torna-se parte integrante da natureza da arte.

_ Interessante. Acho que se vivêssemos na mesma época, certamente você seria “Benjaminiano”, ou eu “Dantiano” – disse Benjamin, abrindo o riso de todos. Quero apenas acrescentar – continuou – reforçando o conceito de dialética: o historiador dialético deve libertar o objeto histórico do fluxo da história contínua, salvando-o, sob a forma de um objeto-mônada: Fragmento de história e assim intemporal. Retorno à idéia de mosaico. O tratado é um mergulho incessante, na imanência de cada objeto, comparável a um mosaico. Ele justapõe fragmentos de pensamento, do mesmo modo que o mosaico justapõe fragmentos de imagens, e nada manifesta com mais força o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da verdade.

_ Mas fico confuso em como extrair o intemporal da obra do Milton, sem recorrer a um levantamento de fatos em uma ordem cronológica – disse eu, um tanto confuso mesmo. Benjamin debruçou-se à mesa, cruzando os braços em minha direção.

_ Você pode discorrer sobre a trajetória do artista de forma linear, inclusive mapeando suas possíveis fases, em que a obra muda de rumo, extraindo a essência de sua questão mais abrangente. A problemática que você deve ter visto em aula. Essa coisinha poderia ter matado a fome de muita gente na guerra, disse Benjamin de boca cheia, saboreando e admirando um pedaço do seu sexto pão de queijo.

_ Se você leu o “Drama do Barroco Alemão” deve lembrar do que eu disse a respeito: somente uma perspectiva distanciada, disposta, inicialmente, a abrir mão da visão da totalidade, pode ensinar o espírito num processo de aprendizagem ascética, a adquirir a força necessária para ver o panorama, sem perder o domínio de si mesmo.

_S-sim... – gaguejei. Lembro alguma coisa. Claro que não lembrava, pois não consegui avançar muito na leitura. Para minha sorte, Danto socorreu:
_ Lembro de Sartre... a consciência do homem é consciente de si mesma (pour si) e, ao mesmo tempo, possui uma existência para o outro (pour autrui): possui um lado interior e exterior, enquanto objeto e sujeito, simultaneamente. Da mesma forma, as épocas também têm um lado exterior e interior: como simplesmente vemos o mundo e o modo de ver. Vemos o mundo através da representação, mas não as vemos. Você, como pesquisador tem que investigar a particularidade de Kurtz em ver o modo de ver o mundo.

_ “Ver o modo de ver”, repeti anotando em minha agenda. Lembrei de uma citação do livro de Danto, “A Transfiguração do Lugar Comum”. Falei em tom solene:

_ “Há coisas que podemos ver nos espelhos, mas que não podemos ver sem eles, notadamente nos mesmos”.

_ Estou impressionado, disse Danto abrindo-se ao riso.
_ E eu com inveja, completou Benjamin.

Todos rimos e me senti tentado a revelar que usei essa frase no meu MSN, mas receio que Benjamin não entenderia. A garçonete trazia mais uma porção de pães de queijo. Aproveitei a euforia e me remeti à alegoria. Benjamim falou mais uma vez de boca cheia:

_ Linguagem característica do Drama Barroco. Etimologicamente alegoria deriva de allos = outro e agoreuein = falar no agora, usar uma linguagem pública. Falar alegoricamente significa, usar uma linguagem literal acessível a todos, remeter a outro nível de significação: dizer uma coisa para significar outra.
Através de sua linguagem, nas metáforas do texto, nos personagens que encarnam qualidades abstratas, na organização da cena, a alegoria diz uma coisa e significa incansavelmente outra e sempre a mesma: a concepção Barroca de História. Por isso o protótipo da alegoria ocidental é o hieróglifo Egípcio, que a época concebia como emanação da sabedoria divina, e no qual a mesma imagem, representa para sempre a mesma coisa.

_ Não sei se entendi muito bem – disse eu confuso.

_ No fundo, ultrapassando seus limites, - continua Benjamim, talvez o barroco estivesse pedindo socorro ao futuro. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado no passado? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Se assim é, existe um encontro marcado entre as gerações precedentes e à nossa, pois a nós, como cada geração, foi concedida uma frágil força messiânica, para a qual o passado dirige um apelo, irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ele.

_ Veja o caso do seu artista em que você mapeia as aproximações de sua obra à pop art – socorreu Danto, enquanto Benjamim olhava intrigado para meu gravador digital.

O Kurtz certamente bebeu da mesma fonte da cultura pop, embora estas fontes sejam ecos da pop americana, adaptados à realidade brasileira que você deve conhecer melhor que nós. Você deve mapear toda esta influência pop desde o internacional, passando pela realidade brasileira e a realidade local. Vejo muita questão do corpo e da fatura das obras também, ecos da geração pop que ainda estavam vivas ainda na época de atuação do artista.

_ Exatamente – concordou Benjamin. Deve ser este seu contexto.
Danto segue entusiasmado.

_ A filosofia está relacionada ao conceito de representação. Encaro a história como a história das alterações dos sistemas de representação, que são interdependentes. A reflexão é sempre sobre o mundo como é pensado e representado – não existe mundo em si. Não há modo de ver as coisas a não ser de uma perspectiva.

_ Filosofia analítica, disse Benjamin.
_ Exatamente, concordou Danto.

_ Este mapeamento a que meu colega se refere, sobre as diferentes realidades desta referência do artista, não deixa de ser uma visão concreta, em relação estreita com o particular, tentando arrancar-lhe seu segredo imediato, sem qualquer mediação da teoria. Use as teorias de Danto em que cita essa tal “pop”, que é o objeto singular. Tal entrega ao objeto singular é de maneira mais geral a característica desse pensamento. Contento-me com um “delicado empirismo” que, como aquele de Goethe, imaginando a essência não por detrás ou acima das coisas, mas nas próprias coisas – completa Benjamin.
Danto resolve retribuir a gentileza:

_ Flâneur! Lembre também de relacionar estas questões do corpo presentes na obra do Kurtz, em que notadamente há muito da sexualidade, do fetiche e do erotismo, bastante presentes na pop também. É de se considerar a atitude do artista desde o que transparece através das obras e aquilo que está obscuro, o que será seu trabalho elucidar. Por um lado, o homem que se sente olhado por tudo e por todos, simplesmente o suspeito; por outro, o totalmente insondável, o escondido. Provavelmente é essa dialética que o homem da multidão desenvolve, conforme as palavras do colega – completa Danto.

Desta vez, notei uma certa afeição e admiração entre os dois e me orgulhei em poder proporcionar tal encontro. Benjamin sorriu um tanto sem jeito pela citação de suas idéias, enquanto Danto começava a dar sinais de que seu tempo estava acabando. Resolvi buscar de Danto um pouco mais sobre sua teoria a respeito do fim da arte, certo de que Benjamin se interessaria.

_ Sei que é uma tese controversa. Meu pensamento é que o fim da arte consiste no surgimento na consciência da verdadeira natureza filosófica da arte. Não é que a arte está morta, nem que os artistas tenham desaparecido, mas que cessou de representar o que significava para as civilizações anteriores. Não que a arte morreu ou que os pintores deixaram de pintar, como eu, por exemplo, mas sim que a história da arte estruturada narrativamente, chegara ao fim.
É como o conceito de bildsdung roman alemão utilizado por Hegel: romance em que o personagem toma consciência da identidade e da natureza própria e assim pode começar algo novo, diferente.

Benjamin apurou os ouvidos, realmente interessado. Quis saber mais sobre esta teoria a respeito do fim da arte. Aproveitei para demonstrar meus estudos, contando o episódio das Brillo Box de Andy Warhol. Danto sacudiu a cabeça satisfeito e continuou:

_ O fim da arte é o fim de uma grande narrativa evolutiva da arte (narrativas da mimese e do modernismo), que se inicia no Quattrocento, com a exaltação da pintura através do paradigma da mimese e desdobra-se no modernismo, para na década de sessenta entrar em colapso com o episódio artístico da Brillo Box de Warhol. O fim da arte coincide com o fim de um percurso histórico da arte, para a compreensão filosófica do conceito, num processo hegeliano de autoconsciência. O percurso que conflui na autoconsciência é uma referencia aos Cursos de Estética de Hegel, em que declara: “... a arte é e permanecerá para nós, do ponto de vista da sua destinação suprema algo do passado”. Essa leitura não significa o fim da arte, mas de uma concepção de arte, na medida em não temos como ver o passado senão através do presente.

Todas as formas são válidas hoje, mas apenas como menção. Existe uma distância histórica instransponível. Temos meios de mencionar próprios do nosso tempo. A arte é historicamente circunscrita, embora seja capaz de mensagens historicamente transcendentes. “Nem mesmo em um período pós-historico se escapa das restrições da historia.

_ “Fim da história” – disse Benjamin pensativo. Imagino agora o porquê essas idéias sejam consideradas tão polêmicas, mas fazem sentido sim... E, a julgar pela sua idade e naturalidade com que expõe, acredito que não tenha tido problema algum com a Gestapo.

A gargalhada foi geral e, se fosse possível, aquela reunião impossível teria perdurado por ainda mais algumas horas e outras tantas porções de pão de queijo, a que mandei embrulhar para os dois enquanto pagava a conta.
Parados à porta do café, continuamos o papo obstruindo a passagem de clientes e garçons. Danto continua em tom filosófico, tentando esmiuçar um pouco mais de sua teoria ao colega:

_ Sou partidário antes de uma estética do sentido do que de uma estética da forma. Meu interesse está em encontrar esses sentidos e procurar explicar como eles estão incorporados nas obras de arte.
Todos devidamente encasacados, Danto encontra tempo ainda para um ultimo comentário antes de enfrentarmos o frio do inverno lá fora. Ele falou quase que exclusivamente pra Benjamin. Já estavam íntimos.

_ Existe um paralelo ao pluralismo pós-histórico, característico da arte contemporânea com uma passagem de Marx e Engels, em A Ideologia alemã, em que afirmam que depois do fim da história se poderia caçar, pescar ou escrever crítica literária sem ser caçador, pescador ou crítico.
A conversa à beira da rua chegou no auge da animação infelizmente no seu momento de despedidas. Satisfeito, agradeci aos dois filósofos guardando com cuidado meu gravador.

Ao que Walter Benjamin comentou gritando e acenando já do outro lado da rua:
_ Mas não esqueça, garoto: não vá entregar esse trabalho em tom de narrativa, muito menos em prosa!! Deixe isso para os escritores (risos).

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008